Outro dia olhei para meu braço
e vi meu relógio parado,
sim, marcando a mesma hora de um dia anterior,
uma hora antiga que já passara,
uma hora que eu não tinha prestado atenção
e a partir do qual,
por alguma razão ele decidiu não funcionar mais.
Sim,
“
a hora eterna” eu preferi chamar assim,
o tempo de sempre para sempre.
Bem, eu me pus
no lugar daquele relógio
e entendi sua mensagem,
de que o tempo
brinca de se repetir
inesgotavelmente
e que não importa se ele pare,
se todos os relógios pararem,
é só ficar ali,
quietinho que daqui a pouco
vai ser a hora que ele esta marcando,
ele terá enfim,
trabalho pela eternidade toda,
se “toda” for uma expressão para eternidade...
mesmo assim paradinho,
todo dia irá trabalhar por um instante,
até o outro instante,
e depois outro, e outro numa dizima,
e nós acontecendo entre um e outro.
Uma maneira de fazer valer os ponteiros.
Eu acho que aquele relógio
sentiu-se feliz com a decisão que tomou,
ficou tranquilo ao invés de ficar dando voltas desesperadas,
parou e esperou;
na verdade ele pensou que com isto
poderia explicar aos que lhe cobravam o tempo,
que ele só avisava do tempo,
ele não era o tempo,
o tempo passava por ele,
e de certo ia embora,
e ele como todos os etéreos,
ficava para se dissolver em um segundo depois do outro.
Então ficar dando voltas
para alcançar o tempo inalcançável
não era mais trabalho para ele,
o tempo o alcançaria, e ele parado,
como um tapeceiro num ponto de ônibus,
tinha certeza de que o tempo passaria por ali,
e de que por um instante,
como em todos os outros tudo faria sentido.
Ele não devia nada a ninguém,
antes de ele existir o tempo já existia.
Tolas cabeças humanas,
que por sinal são as únicas que se preocupam em envolucrar o tempo,
e depois ver que ele é que o envolucrava
e lentamente décimo depois de décimo ia apagando a humanidade.
O relógio parado, parou por que tudo não cabia nele,
e todos buscavam tudo nele, almoços, jantares, reuniões,
aniversários, saudades, vidas e mortes,
e tudo é eterno e o eterno nunca caberia na brevidade de seus ponteiros.
Assim, ele não estava parado e deprimido,
ele estava parado e decidido.
Decidido a não desafiar o tempo,
que o venceria com uma brisa,
mas aproveitar o tempo,
única maneira de eternizar o instante
e estancar a eternidade.
Ele parou para vencer o tempo,
por que o tempo é vencido pelo olhar da sábia espera.
Pois a eternidade escancara a nossa brevidade,
e não estacamos para procurar o instante,
pois segundo o relógio parado;
é a única coisa que temos,
ou pelo menos parece que temos,
parar e contemplar.
O músico procura as notas nos sons,
e as notas são o instante nos sons eternos.
O pintor procura a cor nos pigmentos e nas combinações,
mas os matizes são eternos e o olhar o instante.
O escultor funde, pica, repica, desmonta e remonta formas
procurando uma expressão completa,
mas a expressão completa é eterna,
o material dele é o universo
e suas mãos são breves para moldar nele.
O bailarino quer tornar seu corpo leve e preciso,
numa luta entranhada com a gravidade;
quando pula suavemente não quer pular,
quer enganar o espaço na procura da experiência do voo.
Assim me disse o relógio parado,
ele disse que somos centenas de horas
que tem apenas um instante na mão,
um instante que constantemente passa,
nada mais, e ele parou, não por nada,
mas só para experimentar bem um instante de cada vez,
um dia depois do outro,
ele me olhou com uma ironia sábia nos ponteiros parados
e me disse Carpe Diem!
Eu apenas acenei.
Bom, fez certo o relógio de parar,
e quem quiser saber a hora deverá deduzir,
pois qualquer que seja a hora,
o tempo estará entre um e outro instante,
brevemente capturado por nós tolos.
San Rodrigues